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segunda-feira, 14 de novembro de 2022

 


CERTA CRIANÇA

 

Falávamos em torno da criança,
Numa reunião de cultura e amizade,
Na infância a flor da Humanidade
Que o Céu envia à Terra, em luzes de esperança,
Quando o Irmão Frederico nos contou
Por nota de serviço:
 
– Meus irmãos, quanto a isso,
Tenho um caso expressivo a relatar:
Sabem que fui pintor com grande clientela;
Certa feita, um garoto abordou-me no lar,
Seis janeiros de idade e presença singela,
Envergando um roupão imundo e roto...
Declarou residir num recanto de esgoto,
Perdera os pais na morte e pedia-me um pão.
Parei tocado de admiração.
 
Doía vê-lo assim, maltratado e sozinho,
Figurava-se um pássaro sem ninho,
Na manhã muito fria, a tremer e a tremer...
Enquanto se servia,
Qual se fosse num sonho de alegria
Da porção de merenda improvisada,
Fitei-lhe a cabeleira despenteada,
Os olhos luminosos de candura,
Os pés descalços com sinais de lama
E, abeirando-me dele, perguntei:
– Como se chama?
Ele me respondeu, como que a medo:
– Meu nome é Alfredo...
 
Uma ideia, de súbito, me veio:
Pintá-lo nuns momentos de recreio.
O pequeno aderiu. Pousou à minha frente,
No grande ateliê a que levei-o.
Após algumas horas, tive o esboço e a base
Para a tela maior que, então, me vinha à mente...
Depois disso, o “até breve” numa frase
E alguns magros tostões na mão pequena.
No entanto, ele indagou
Num tom de voz de fazer pena:
– O senhor não me quer para morar consigo?
– Não, Alfredo, – aduzi, – tenho o meu próprio lar,
Procura um outro amigo,
Alguém há de surgir que te possa ajudar.
 
Olhos em pranto, entre magoado e aflito,
Postou-se à frente do meu cavalete,
Onde me vira trabalhar,
E disse: o meu retrato está bonito...
Em seguida, saiu para não mais voltar.
 
Surge a pausa do amigo. A emoção se lhe aviva,
Logo após, continua a narrativa:
– Dói-me rememorar, porém confesso:
O retrato de Alfredo fez sucesso...
Ganhei muito dinheiro
Em cópias e encomendas
Para festejos e oferendas...
Mas sempre conservei o original;
Várias vezes, mudei de residência,
No entanto, a grande tela
A que emprestei o nome de “Inocência”
Foi sempre, em minha sala de serviço,
O quadro principal.
 
Trinta e cinco janeiros transcorridos,
Com meus filhos casados... Eu doente,
Certa noite, a lembrar os tempos idos,
Observei que alguém, de passo leve,
Penetrara-me a casa, mansamente;
Colocando-me à espreita e firme à escuta,
Vi que esse alguém
Na sala de trabalho, quase à minha frente,
Manejava lanterna diminuta...
Sustentava, porém, junto ao meu leito,
Num disfarce perfeito,
O botão de uma forte campainha,
Cujo toque de alarme
Somente dava som em morada vizinha,
Onde, a qualquer instante de perigo,
Um devotado amigo
Estava pronto para auxiliar-me.
 
Esse amigo que amei qual se fosse meu filho,
Tinha uma chave de meu domicílio...
Fiquei, ansiosamente, a esperar e esperar,
Tremendamente mudo...
O assaltante, contudo,
Rebuscava o meu cofre, devagar...
 
Decorridos minutos,
Um grupo socorrista,
Ante a estranha ocorrência,
Penetrou-me, depressa, a residência,
E pôs-se logo à vista.
Fez-se luz e agitado companheiro
Atirou no infeliz
Que caiu, colocando as mãos no peito.
Ergui-me e vim para o recinto estreito...
O assaltante era um homem bem vestido
Que, a princípio, supus desconhecido;
O sangue a borbotar do peito aberto
Anunciava a morte, ali por perto...
Ele, porém, fitou-me longamente,
Depois de contemplar a tela em frente,
E, em seguida,
Falou-me em voz sumida:
– O senhor
Deve ser o pintor...
Vai lembrar-se de mim...
E como quem se via
No instante amargo e exato
Em que achava no piso o próprio fim,
Disse ainda mais quase que em segredo:
– Eu sou o Alfredo,
O Alfredo do retrato...
 
Sob forte emoção,
O amigo terminou a narração:
– Naquela mesma hora,
Debrucei-me chorando sobre o morto,
Atrelado a terrível desconforto...
E, ainda hoje, penso muitas vezes
Que, na Terra, por mais que se resguarde
A infância, como sendo a aurora da esperança,
O socorro à criança
Quase sempre é uma luz que brilha muito tarde...
 
DOLORES, Maria. A vida conta. Psicografia de F. C. Xavier. 1980.


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