Falávamos em torno da
criança, Numa reunião de cultura
e amizade, Na infância a flor da
Humanidade Que o Céu envia à
Terra, em luzes de esperança, Quando o Irmão
Frederico nos contou Por nota de serviço: – Meus irmãos, quanto a
isso, Tenho um caso
expressivo a relatar: Sabem que fui pintor
com grande clientela; Certa feita, um garoto
abordou-me no lar, Seis janeiros de idade
e presença singela, Envergando um roupão
imundo e roto... Declarou residir num
recanto de esgoto, Perdera os pais na
morte e pedia-me um pão. Parei tocado de
admiração. Doía vê-lo assim,
maltratado e sozinho, Figurava-se um pássaro
sem ninho, Na manhã muito fria, a
tremer e a tremer... Enquanto se servia, Qual se fosse num sonho
de alegria Da porção de merenda
improvisada, Fitei-lhe a cabeleira
despenteada, Os olhos luminosos de
candura, Os pés descalços com
sinais de lama E, abeirando-me dele,
perguntei: – Como se chama? Ele me respondeu, como
que a medo: – Meu nome é Alfredo... Uma ideia, de súbito,
me veio: Pintá-lo nuns momentos
de recreio. O pequeno aderiu.
Pousou à minha frente, No grande ateliê a que
levei-o. Após algumas horas,
tive o esboço e a base Para a tela maior que,
então, me vinha à mente... Depois disso, o “até
breve” numa frase E alguns magros tostões
na mão pequena. No entanto, ele indagou Num tom de voz de fazer
pena: – O senhor não me quer
para morar consigo? – Não, Alfredo, –
aduzi, – tenho o meu próprio lar, Procura um outro amigo, Alguém há de surgir que
te possa ajudar. Olhos em pranto, entre
magoado e aflito, Postou-se à frente do
meu cavalete, Onde me vira trabalhar, E disse: o meu retrato
está bonito... Em seguida, saiu para
não mais voltar. Surge a pausa do amigo.
A emoção se lhe aviva, Logo após, continua a
narrativa: – Dói-me rememorar,
porém confesso: O retrato de Alfredo
fez sucesso... Ganhei muito dinheiro Em cópias e encomendas Para festejos e
oferendas... Mas sempre conservei o
original; Várias vezes, mudei de
residência, No entanto, a grande
tela A que emprestei o nome
de “Inocência” Foi sempre, em minha
sala de serviço, O quadro principal. Trinta e cinco janeiros
transcorridos, Com meus filhos
casados... Eu doente, Certa noite, a lembrar
os tempos idos, Observei que alguém, de
passo leve, Penetrara-me a casa,
mansamente; Colocando-me à espreita
e firme à escuta, Vi que esse alguém Na sala de trabalho,
quase à minha frente, Manejava lanterna
diminuta... Sustentava, porém,
junto ao meu leito, Num disfarce perfeito, O botão de uma forte
campainha, Cujo toque de alarme Somente dava som em
morada vizinha, Onde, a qualquer
instante de perigo, Um devotado amigo Estava pronto para
auxiliar-me. Esse amigo que amei
qual se fosse meu filho, Tinha uma chave de meu
domicílio... Fiquei, ansiosamente, a
esperar e esperar, Tremendamente mudo... O assaltante, contudo, Rebuscava o meu cofre,
devagar... Decorridos minutos, Um grupo socorrista, Ante a estranha
ocorrência, Penetrou-me, depressa,
a residência, E pôs-se logo à vista. Fez-se luz e agitado
companheiro Atirou no infeliz Que caiu, colocando as
mãos no peito. Ergui-me e vim para o
recinto estreito... O assaltante era um
homem bem vestido Que, a princípio, supus
desconhecido; O sangue a borbotar do
peito aberto Anunciava a morte, ali
por perto... Ele, porém, fitou-me
longamente, Depois de contemplar a
tela em frente, E, em seguida, Falou-me em voz sumida: – O senhor Deve ser o pintor... Vai lembrar-se de
mim... E como quem se via No instante amargo e
exato Em que achava no piso o
próprio fim, Disse ainda mais quase
que em segredo: – Eu sou o Alfredo, O Alfredo do retrato... Sob forte emoção, O amigo terminou a
narração: – Naquela mesma hora, Debrucei-me chorando
sobre o morto, Atrelado a terrível
desconforto... E, ainda hoje, penso
muitas vezes Que, na Terra, por mais
que se resguarde A infância, como sendo
a aurora da esperança, O socorro à criança Quase sempre é uma luz
que brilha muito tarde... DOLORES, Maria. A vida conta. Psicografia de F. C. Xavier.
1980.
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