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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – II

 

De Broquéis

Siderações

Para as estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados,
De nuvens brancas a amplidão vestindo...
 
Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...
 
Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...
 
E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...
 
Fonte: GERALDO, José. Cem anos com Cruz e Sousa. 2. ed. Brasília: CEUB; LGE Editora, 1998. Broquéis, p. 73.
 
De Parnaso de além-túmulo

Anjos da paz
 
Ó luminosas formas alvadias
Que desceis dos espaços constelados
Para lenir a dor dos desgraçados
Que sofrem nas terrenas gemonias!
 
Vindes de ignotas luzes erradias,
De lindos firmamentos estrelados,
Céus distantes que vemos, dominados
De esperanças, anseios e alegrias.
 
Anjos da Paz, radiosas formas claras,
Doces visões de etéricos carraras
De que o espaço fúlgido se estrela!...
 
Clarificai as noites mais escuras
Que pesam sobre a terra de amarguras,
Com a alvorada da Paz, ditosa e bela...
 
SOUSA, Cruz e (Espírito). Parnaso de além-túmulo. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 19. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2016, p. 387.
 
Comentários
 
            Segundo SPITZER (2003), em sua proposta dialógica construtivista, "[...] a voz da poesia pode soar de diferentes modos em cada leitor e é preciso estar atento para não querer silenciar o outro impondo um modo de ler e entender um texto"[1].
            Podemos analisar um poema sob os seguintes aspectos: fonético, lexical, sintático, fonológico e semântico. Aqui, também proponho a análise comparativa, à luz do Espiritismo, pois já temos grande quantidade de professores doutores de alto nível com propostas para este tipo de abordagem teórica, metodológica e prática, como é o caso do prof. Silvio Chibeni[2].
            Vamos, também, observar, na análise dos sonetos, a estética da recepção proposta pela escola pós-estruturalista. Propomos um diálogo interdisciplinar entre a literatura e a ciência espírita, naquilo que couber.
            Para não nos alongarmos, por enquanto, vamos enfocar os aspectos comparativos de conteúdo que iniciamos na primeira análise, haja vista que as estruturas formais nos parecem muito claras em ambos os sonetos.
            Em Siderações, o poeta, em vida física, enfoca como "sujeito", no seu tempo, as "ânsias e os desejos". Os argumentos utilizados são os da ascensão dessas manifestações psicológicas que refletem a condição de um ser vítima de preconceitos e em luta para libertar-se desse emparedamento de quem se encontra na periferia do capitalismo. Percebe-se também uma fuga da realidade e uma busca do espiritual, do ideal de pureza tão valorizado pelo branco de sua época e que tanta angústia provocava no homem negro, filho de escravos. Então, essas ânsias, esses desejos apenas são satisfeitos quando entram em contato com "arcanjos" abrindo suas asas de ouro em "etéreos turíbulos de neve".
Turíbulos são "objetos litúrgicos, em geral de cobre,  para queimar incensos em  cerimônias religiosas". A neve aí seria a representação da cor do incenso aromal, que provoca "ondas nevoentas" das "Visões", palavra destacada com inicial maiúscula para representar os seres celestiais, que, como vemos no terceto final, formulam "ritos" que conduzem as "ânsias e desejos" sem fim, em cânticos de uma vida eterna, com E maiúsculo, como se repercutissem para sempre no espaço ocupado pelos Astros, também destacados como representação dos diversos mundos do universo para onde se dirigem os desejos ansiosos de todos os oprimidos. Ali estariam os espaços de sua libertação, não na Terra, onde são escravizados, discriminados.
            Em Anjos da paz o sujeito são os Anjos com suas formas "alvadias", ou seja, claras, que descem dos "espaços constelados" como se respondessem aos apelos das "ânsias e desejos" presentes no soneto anterior. Percebem-se, em ambos os poemas,  palavras representativas de luzes, astros (aqui nos "firmamentos estrelados"), brancura, como no caso de "carraras", metonímia do mármore branco da cidade de Carrara, na Itália. Temos, também, junto dos "anseios" (segunda estrofe), as esperanças e as alegrias. Esses anjos descem dos espaços para aliviar (lenir) "a dor dos desgraçados", ou seja, dos discriminados, rejeitados, presos às "terrenas gemonias". Gemonia é uma metáfora de suplício. Eram as escadas do Capitólio que davam para o rio Tibre, donde, em Roma, eram lançados os escravos.
           No final, um apelo aos Anjos da Paz para, do espaço fúlgido e estrelado, clarificarem as noites mais escuras de todos os oprimidos, na "terra de amarguras" em novo amanhecer de Paz, que ele destaca como bem superior, portanto, ditoso e belo.
           Então, se antes o apelo era de baixo para cima; agora, a resposta é de cima para baixo. No soneto anterior, o poeta fala de suas ânsias e desejos infinitos, ou seja, insaciados na Terra. No atual, ele evoca os "Anjos da Paz" para que venham do espaço implantar a beleza e a felicidade aqui, quando os homens saírem das trevas noturnas para a claridade de um dia de paz.  
 

 



[1] SPITZER, Leo. Três poemas sobre o êxtase. Trad. Samuel T. Júnior. São Paulo: Cosac&Naify, 2003. Apud ALVES, José Hélder Pinheiro. Contribuição da Estilística para o Ensino da Poesia. VIA ATLÂNTICA, São Paulo, n. 28, 143- 159. DEZ. 2015.

[2] Mestre em física, doutor em lógica e filosofia da ciência, com pós-doutoramento na Universidade de Paris VII, Silvio Seno Chibeni é professor titular do Departamento de Filosofia da Unicamp. 

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