ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – II
De
Broquéis
Siderações
Para as estrelas
de cristais gelados
As ânsias e os
desejos vão subindo,
Galgando azuis e
siderais noivados,
De nuvens brancas
a amplidão vestindo...
Num cortejo de
cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras
ferindo,
Passam, das vestes
nos troféus prateados,
As asas de ouro
finamente abrindo...
Dos etéreos
turíbulos de neve
Claro incenso
aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de
Visões levanta...
E as ânsias e os
desejos infinitos
Vão com os arcanjos
formulando ritos
Da Eternidade que
nos Astros canta...
Fonte: GERALDO, José. Cem anos
com Cruz e Sousa. 2. ed. Brasília: CEUB; LGE Editora, 1998. Broquéis, p. 73.
De Parnaso de além-túmulo
Anjos da paz
Ó luminosas formas alvadias
Que desceis dos espaços constelados
Para lenir a dor dos desgraçados
Que sofrem nas terrenas gemonias!
Vindes de ignotas luzes erradias,
De lindos firmamentos estrelados,
Céus distantes que vemos, dominados
De esperanças, anseios e alegrias.
Anjos da Paz, radiosas formas claras,
Doces visões de etéricos carraras
De que o espaço fúlgido se estrela!...
Clarificai as noites mais escuras
Que pesam sobre a terra de amarguras,
Com a alvorada da Paz, ditosa e bela...
SOUSA, Cruz e (Espírito). Parnaso
de além-túmulo. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 19. ed. 4. imp.
Brasília: FEB, 2016, p. 387.
Comentários
Segundo SPITZER (2003), em sua
proposta dialógica construtivista, "[...] a voz da poesia pode soar de diferentes
modos em cada leitor e é preciso estar atento para não querer silenciar o outro
impondo um modo de ler e entender um texto"[1].
Podemos analisar um poema sob os
seguintes aspectos: fonético, lexical, sintático, fonológico e semântico. Aqui,
também proponho a análise comparativa, à luz do Espiritismo, pois já temos
grande quantidade de professores doutores de alto nível com propostas para este
tipo de abordagem teórica, metodológica e prática, como é o caso do prof. Silvio
Chibeni[2].
Vamos, também, observar, na análise
dos sonetos, a estética da recepção proposta pela escola pós-estruturalista. Propomos
um diálogo interdisciplinar entre a literatura e a ciência espírita, naquilo
que couber.
Para não nos alongarmos, por
enquanto, vamos enfocar os aspectos comparativos de conteúdo que iniciamos na
primeira análise, haja vista que as estruturas formais nos parecem muito claras
em ambos os sonetos.
Em Siderações, o poeta, em
vida física, enfoca como "sujeito", no seu tempo, as "ânsias e
os desejos". Os argumentos utilizados são os da ascensão dessas manifestações
psicológicas que refletem a condição de um ser vítima de preconceitos e em luta
para libertar-se desse emparedamento de quem se encontra na periferia do
capitalismo. Percebe-se também uma fuga da realidade e uma busca do espiritual,
do ideal de pureza tão valorizado pelo branco de sua época e que tanta angústia
provocava no homem negro, filho de escravos. Então, essas ânsias, esses desejos
apenas são satisfeitos quando entram em contato com "arcanjos" abrindo
suas asas de ouro em "etéreos turíbulos de neve".
Turíbulos são "objetos litúrgicos, em
geral de cobre, para queimar incensos em
cerimônias religiosas". A neve aí
seria a representação da cor do incenso aromal, que provoca "ondas
nevoentas" das "Visões", palavra destacada com inicial maiúscula
para representar os seres celestiais, que, como vemos no terceto final,
formulam "ritos" que conduzem as "ânsias e desejos" sem
fim, em cânticos de uma vida eterna, com E maiúsculo, como se repercutissem
para sempre no espaço ocupado pelos Astros, também destacados como representação
dos diversos mundos do universo para onde se dirigem os desejos ansiosos de
todos os oprimidos. Ali estariam os espaços de sua libertação, não na Terra,
onde são escravizados, discriminados.
Em Anjos da paz o sujeito são
os Anjos com suas formas "alvadias", ou seja, claras, que
descem dos "espaços constelados" como se respondessem aos apelos das
"ânsias e desejos" presentes no soneto anterior. Percebem-se, em
ambos os poemas, palavras
representativas de luzes, astros (aqui nos "firmamentos estrelados"),
brancura, como no caso de "carraras", metonímia do mármore branco da
cidade de Carrara, na Itália. Temos, também, junto dos "anseios"
(segunda estrofe), as esperanças e as alegrias. Esses anjos descem dos espaços
para aliviar (lenir) "a dor dos desgraçados", ou seja, dos
discriminados, rejeitados, presos às "terrenas gemonias". Gemonia é
uma metáfora de suplício. Eram as escadas do Capitólio que davam para o rio
Tibre, donde, em Roma, eram lançados os escravos.
No final, um apelo aos Anjos da Paz
para, do espaço fúlgido e estrelado, clarificarem as noites mais escuras de
todos os oprimidos, na "terra de amarguras" em novo amanhecer de Paz,
que ele destaca como bem superior, portanto, ditoso e belo.
Então, se antes o apelo era de baixo para
cima; agora, a resposta é de cima para baixo. No soneto anterior, o poeta fala de suas
ânsias e desejos infinitos, ou seja, insaciados na Terra. No atual, ele evoca os "Anjos da Paz" para que venham do espaço implantar a beleza e a felicidade aqui, quando os homens saírem das trevas
noturnas para a claridade de um dia de paz.
[1] SPITZER,
Leo. Três poemas sobre o êxtase. Trad. Samuel T. Júnior. São Paulo:
Cosac&Naify, 2003. Apud ALVES, José Hélder Pinheiro. Contribuição
da Estilística para o Ensino da Poesia. VIA ATLÂNTICA, São Paulo, n. 28,
143- 159. DEZ. 2015.
[2] Mestre em física, doutor em lógica e filosofia da ciência,
com pós-doutoramento na Universidade de Paris VII, Silvio Seno Chibeni é
professor titular do Departamento de Filosofia da Unicamp.
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