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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O corpo (conto de Jorge Leite de Oliveira)

José Firmino nasceu na cidade de Cantagalo, no Rio de Janeiro, bairro de Jaçanã. Em criança, filho único, sua mãe fazia tudo para não contrariá-lo. Dizia ela, adepta que era da psicologia moderna, que os pais não devem interferir, a não ser para protegê-los, nos atos de seus filhos inocentes, para não lhes provocar traumas psíquicos no futuro. Perguntado, um dia, sobre o que gostaria de ser quando crescesse, o menino não teve dúvida e respondeu: “Quero ser motorista de avião. E avuar com Luizinha.”
Assim cresceu Zezinho, como sempre fora tratado por todos os conhecidos. Morava em bela casa de seis quartos, suíte em todos eles, com quintal de 1.500 m², onde foram construídos um belo jardim, piscina e quadra de futebol soçaite. Pela manhã, ia ao colégio, a duas esquinas da sua rua. Na grande área de sua casa, desde pequeno, costumava reunir seus coleguinhas de escola, com os quais passava as tardes brincando. Ora jogavam bola, ora iam para a piscina, muitas vezes nus, sob as vistas complacentes da mãe, professora universitária que pouco ficava em casa nesse horário. Esse era o tempo das algazarras infantis e inocentes do filho com seus amiguinhos e amiguinhas.
As tendências afetivas, as atitudes da maioria desses jovens pouco incomodavam a seus pais, no que se assemelhavam à professora Ana Patrícia, mãe de Firmino que, entretanto, junto com o esposo, José Raimundo, frequentavam regularmente a igreja do bairro, a cinco esquinas da rua de seu lar.
Certo dia, o marido lhe disse, carinhosamente, como era de seu hábito tratá-la: “Patricinha, nosso filho já está com seis anos, você não acha melhor levá-lo para assistir às aulas de catequese infantil da igreja?”
“Acho que não, ele ainda é muito novinho e fez uma birra danada outro dia, quando lhe disse para ir conosco à missa. Falou que prefere brincar com a Luizinha, o Armandinho, a Claudinha e o Tiaguinho na piscina. Então, não quero impor nossa religião a nosso filho querido. Deixa ele decidir quando crescer.”
“Mas e se ele resolver não ter religião alguma?” Perguntou o marido, um tanto preocupado. “Isso não será ruim para ele? E, o que é pior, se ele resolver adotar outra crença e não a nossa, que tanto conforto espiritual, tanta paz, tanta harmonia nos traz?”
“Lá vem você com sua mania de impor suas ideias e crenças. Nossa religião, nossos gostos, nossas opiniões não devem ser impostos ao nosso filho. Ele que decida sobre o que mais lhe agrada, quando puder discernir. Não vamos tolher sua liberdade de escolha, impondo-nos a ele, desde pequeno, tão frágil e inocente. Ao crescer, ele saberá escolher o que é melhor para si.”
O marido calou-se, e a mulher ainda aduziu: “Comprei um pequeno computador e mandei instalá-lo no quarto ao lado do de Zezinho, que reservei para seus entretenimentos, afinal, ainda nos sobram dois quartos para hóspedes em nosso lar, uma vez que o outro já é nosso escritório e só eu fico lá até tarde da noite, elaborando aulas, preparando e corrigindo provas de alunos.
“Está bom”, disse o marido, que não gostava de contrariá-la. “Mas é importante instalar uma senha e bloquear mensagens e sites impróprios para crianças no computador do Zezinho.”
“Não vou fazer nada disso”, respondeu, mal-humorada. “Meu filho é um anjinho e quero sua felicidade, mas se ficar controlando sua vida, repito, ele vai crescer cheio de medos, de complexos, em tudo vai enxergar o pecado. Nosso anjo precisa ser livre, para poder voar como as andorinhas, nos céus de Cantagalo, junto com seus amiguinhos.”
Mais uma vez, o pai de José Firmino preferiu calar-se a contrariar Patricinha, mulher belíssima, de trinta anos de idade, olhos azuis, cabelos negros e compridos, seios grandes, mas sem exageros, corpo de 1,60 m, tez clara e personalidade forte.
O marido tinha 1,85 m, olhos negros, como a cor de sua pele, era calvo, esbelto, pesava 80 quilos e, à época, tinha quarenta anos.
O tempo passou, o menino e seus amigos cresceram e chegaram à puberdade. Certo dia, Zezinho, que nunca ia à igreja e já se dizia ateu, chegou a casa, sem camisa, com a tatuagem de um dragão no peito sem pelos. A mãe, ao vê-lo assim, assustou-se, mas controlando-se, emocionalmente, perguntou-lhe:
“Filho, que ideia é essa de pintar seu corpo desse jeito?”
E ele respondeu-lhe às gargalhadas: “Não é pintura, não, velha. Não vê que isso é uma tatuagem?”
“Meu filho, em primeiro lugar, não sou nenhuma ‘velha’, pois só tenho 37 anos; depois, acho que nosso corpo não é tela de quadro para expor dragão e ouros bichos... Você não acha que tenho razão?” Disse-lhe cheia de esperança em que o filho concordasse com ela.
“Não acho nada.” Respondeu-lhe o adolescente. “Mas já que você não gosta de animais, vou tatuar meu corpo com os rostos de minhas amigas e meus amigos, pois você sabe que amo todos eles. Por isso, quero homenageá-los, velhinha querida.”
“Já lhe disse que não sou nenhuma velha...”
“Desculpe-me, mãezinha, ter voltado a chamar-lhe de velha; você é a mais linda flor do nosso jardim.”
Foi o bastante para a mãe derreter-se toda em beijos e carícias e esquecer a má impressão causada pela tatuagem. Afinal, o filhão já estava com treze anos e (por que não dizer?) a tatuagem parecia-lhe, agora, verdadeira obra de arte, mandada fazer com o dinheiro da mesada paterna, que, mensalmente, depositava, na conta bancária do filho, mil reais.
O pai era engenheiro, trabalhava para o Governo do Estado e ganhava bem. Quando chegou do trabalho e viu o filho tatuado, não fez qualquer comentário. À noite, sentiu uma forte dor no peito. A mulher, preocupada, ligou para uma amiga cardiologista, que lhe pediu para levá-lo imediatamente à emergência do hospital onde dava plantão. Angustiada, Patricinha auxiliou o marido a vestir-se e, em alta velocidade, chegou ao hospital. Entretanto, quando os padioleiros da emergência foram pegá-lo, para desespero da esposa, seu marido acabava de dar o último suspiro em vida.
Foi um grande choque familiar, mas a pensão deixada pelo de cujus e o patrimônio do casal, somados ao seu razoável salário de professora de inglês na Faculdade, permitiram à mãe e filho continuarem desfrutando de uma vida sem sobressaltos financeiros.
Com o tempo, as extravagâncias do filho foram aumentando. Passava horas na internet, principalmente à noite, quando ia dormir às quatro ou cinco horas da madrugada e, nos finais de semana, ia com os amigos às baladas, onde consumia grande quantidade de bebidas alcoólicas, agora na idade de dezesseis anos, burlando os vigilantes das boates, principalmente por ser alto como o pai e aparentar ter maioridade. Não raras vezes, era levado embriagado e passando mal para sua residência.
A mãe tudo relevava, pois seu Zezinho estava ficando homem e precisava aprender muitas coisas do universo masculino. Havia noites em que o rapaz dormia com algumas de suas amigas; outras, madrugava com seus amigos. Gritos de prazer, em ambas as ocasiões, madrugada afora, eram ouvidos. Desculpava-se, no dia seguinte, dizendo à mãe que estiveram jogando, pela internet, durante toda a noite.
Chegou aos dezoito anos. As tatuagens, para desgosto materno, agora tomavam quase todo o corpo do rapaz, que as considerava obras de arte. Um dia, chegou a casa com um amigo e a namorada deste, os quais apresentavam dois enormes piercings, um no nariz, outro na língua de cada um deles. Disse, então, a sua mãe, que também desejava usar seu corpo como escultura da verdadeira obra de arte, pois, até então, a tatuagem era uma arte menor.
A mãe tentou argumentar: “Filho, você já está com o corpo tomado de tatuagens. Não acha que já chega? Pare um pouco e pense. Suas notas da escola estão muito baixas, você já reprovou no ano passado e, pelo que estou vendo, vai reprovar de novo este ano.”
“O que é isso, velha? Meta-se com sua vida. Pensa que não sei que está de caso com um professor casado de sua escola? Vai tomar #* @. E quer saber? Não vou mais estudar. A partir de hoje, vou entrar para o grupo de escultura do corpo como obra de arte.”
A mãe, horrorizada, com o tratamento brutal do filho, humilhada por se ver descoberta em seu segredo íntimo, calou-se e nunca mais teve coragem de lhe fazer qualquer reprimenda. Naquele mesmo dia, Zezinho saiu com seus amigos adeptos do piercing e voltou com duas grandes fendas nas orelhas. Passado um mês, chegou com uma imensa argola pendurada no nariz e com a língua partida em duas metades. Mais um mês e sua testa ostentava três enormes caroços em forma de chifres.
A mãe já não olhava para o filho. Deixara de frequentar a igreja, com a morte do marido, única razão do antigo hábito, mas agora, ansiosa de uma explicação para seu fracasso materno, voltara a assistir às missas e encontros catequéticos todos os fins de semana, além de encontrar outro namorado solteiro, irmão da igreja. Nunca deixava de orar pelo filho e se perguntava como o deixara tornar-se o “monstrengo” de agora.
Mas Zezinho já não se pertencia. A obsessão apoderara-se dele. Eram os amigos das baladas noturnas, com os quais participava de orgias mil e do consumo de drogas. Eram os obsidiados a fazerem de seus corpos mostruários vivos de aspectos monstruosos, imaginando, com isso, chocar a sociedade, ser diferentes e... se autodestruírem.
Um dia porém (sempre o há), uma cena o chocou. Viu Armandinho chegar, com o rosto cheio de pústulas e buracos horrendos, à sala de transformações bizarras, onde eram colocados os piercings, ou se faziam as cirurgias “artísticas”. O excesso de intervenções para colocações de metais e outros objetos provocara as horríveis infecções. Ele então chorou, abraçado ao amigo também em prantos, que quase foi agredido fisicamente pelo responsável pelas “intervenções cirúrgicas”. Ouviu o pseudo cirurgião dizer-lhes, aos gritos, que a “arte corporal cirúrgica” tem seus limites físicos, e aquelas sequelas seriam irreversíveis, tanto física quanto psicologicamente.
Nesse dia, Zezinho saiu da “clínica” amargurado. Após levar o amigo à casa dele, foi ao apartamento onde morava Luizinha, então também obcecada por trabalhos artísticos de introdução de piercings em seu corpo, que já ostentava setenta e sete deles, mesmo número de Zezinho, seu namorado preferido desde a infância. Suas aparências eram repugnantes, e isto lhes foi dito por um psiquiatra que passara a tratar a moça. Precisavam internar-se e medicar-se adequadamente, antes que o socorro médico fosse inútil. Aquilo não era vida, muito menos exemplo para ninguém seguir...
Ambos, revoltados, riram-se do facultativo e o expulsaram, aos gritos , do apartamento de Luizinha. Em seguida, abriram uma garrafa de whisky, beberam bastante, escancararam a janela do apartamento, situado no 15º andar, abraçaram-se e jogaram-se de lá, espatifando seus corpos artísticos na calçada, às seis horas da manhã.
Uma vizinha ainda ouviu quando, antes de se atirarem, os dois gritaram: “Somos duas andorinhas, vamos voar, viva a liberdade!”

Um comentário:

  1. Este é um conto impressionante. Mostra bem o que faz a falta de princípios morais seguros na vida de algumas pessoas.

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