Os
Obreiros do Senhor e o Espiritismo
Jorge Leite de Oliveira
jojorgeleite@gmail.com
Em mensagem intitulada Os obreiros do Senhor, o Espírito de
Verdade diz o seguinte:
Aproxima-se o tempo em que se cumprirão
as coisas anunciadas para a transformação da Humanidade. Felizes os que
houverem trabalhado no campo do Senhor, com desinteresse e sem outro motivo,
senão a caridade! [...] Felizes os que houverem dito aos seus irmãos: ‘Irmãos,
trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao
chegar, encontre acabada a obra’, pois o Senhor lhes dirá: ‘Vinde a mim, vós
que sois bons servidores, vós que soubestes impor silêncio aos vossos ciúmes e
às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra! (KARDEC,
2017, p. 264)
Allan
Kardec foi instruído e, mais que isso, educado por Pestalozzi, cujo espírito pedagógico
aliado a uma fé cristã sem dogmas visava a promover a união entre todos os crentes,
fossem eles católicos, evangélicos, ou não, o que lhe custou a “intolerância
protestante”, segundo Wantuil; Thiesen (2004, v. I, p. 74), embora ele, Pestalozzi, fosse protestante. O preconceito e a intolerância religiosa de seu tempo acabaram
por paralisar uma das mais belas propostas educacionais de todas as épocas, com
a implantação da pedagogia da instrução aliada à moral prática, não dogmática e
tolerante para com as crenças alheias (id., p. 75). Essa era a proposta do
Instituto Pestalozzi em Yverdon, na Suíça, de reputação mundial que, no dizer
de um dos seus ex-alunos, o pastor Jayet, utilizava a “disciplina do amor” (In:
WANTUIL; THIESEN, 2004, v. I, p. 75).
As
ideias sublimadas, porém, jamais são destruídas, por trazerem consigo as
grandes verdades. Voltando a Lyon, o ainda jovem Denizard Rivail, antes mesmo
de adotar o pseudônimo Allan Kardec, imaginava uma sociedade em que as disputas
pelo poder cedessem lugar à ascendência do amor, à tolerância de crenças e ao
respeito à diversidade de consciências. Desse modo, influenciado pela proposta
pedagógica pestalozziana, Rivail ministrou cursos gratuitos, publicou obras
pedagógicas premiadas, construiu institutos educativos e já se tornava célebre
em Paris... mas ainda faltava algo que lhe preenchesse o ideal de transformar o
mundo para melhor.
Lembram
Wantuil; Thiesen (2004, v. I, p. 83) que, desde a época em que estudou no
Instituto Pestalozzi, o futuro Codificador da Doutrina Espírita sonhava com a
união das religiões, por verificar ali que a intolerância religiosa afastava do
trabalho professores de notável capacidade intelectual. E, quase ao final de
sua missão, o “ideal da mocidade” era ressaltado por Allan Kardec nestas suas
palavras:
A unidade de crença será o laço
mais forte, o fundamento mais sólido da fraternidade universal, obstada, desde
todos os tempos, pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as
famílias, que fazem sejam uns, os dissidentes, vistos pelos outros como
inimigos a serem evitados, combatidos, exterminados, em vez de irmãos a serem
amados (KARDEC, apud WANTUIL; THIESEN, 2004, v. I, p. 83).
Foi a partir dos
primeiros contatos com os fenômenos das mesas girantes, na casa da senhora
Plainemaison, em maio de 1855, que Kardec entreviu, nas comunicações
observadas, algo sério, tão sério que o fez comparecer, semanalmente, àquelas
reuniões. Observando e comunicando-se com os manifestantes, que se diziam ser Espíritos
dos chamados mortos, o futuro Codificador do Espiritismo fazia experiências,
com indagações até mesmo mentais, que sempre eram respondidas de modo
inteligente e independente.
Nessas
reuniões, enquanto muitos divertiam-se com perguntas frívolas sobre coisas
materiais e futuras, sem grande proveito, Kardec percebeu a “chave do problema
tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução
que [ele] procurara em toda a [sua] vida” (KARDEC, 2016, p. 240). Perseverando
em suas observações e experiências, com método, bom senso e objetividade, o
Codificador do Espiritismo angariou a confiança dos Espíritos Superiores e do
Espírito de Verdade, que lhe transmitia a vontade e as diretrizes do Cristo na
consolidação do edifício da Doutrina Espírita, que é o Consolador prometido por
Ele para permanecer eternamente com a Humanidade e nos esclarecer todas as
coisas, como nos foi narrado em João, 14: 15 a 18 e 16:12- 13.
O
tempo passou, e Kardec abandonou todos os seus projetos de pedagogo e escritor
renomado, arregaçou as mangas e dedicou os anos restantes de sua existência a
observar, anotar, comentar e divulgar tudo o que via e ouvia das revelações dos
Espíritos, com base nos métodos experimental e dialético. Foi assim que, disse
ele: “Levava para cada sessão uma série de perguntas preparadas e metodicamente
dispostas. Eram sempre respondidas com precisão, profundeza e lógica” (KARDEC,
2016, p. 241).
Ali
estava a base de O livro dos espíritos,
que se expandiria nas demais obras do chamado pentateuco kardequiano, subsidiadas pela Revista Espírita: O livro dos
médiuns, O evangelho segundo o espiritismo;
O céu e o inferno; e A gênese. Antes da implantação dessa
nova era, o Espírito de Verdade, ao anunciar a Kardec sua missão, alertou-o de que
para seu bom desempenho não lhe seria suficiente a inteligência. Ele teria que
ser humilde, modesto e desinteressado, pois Deus “abate os orgulhosos, os
presunçosos e os ambiciosos”. Ele precisaria possuir “devotamento, abnegação e
disposição a todos os sacrifícios” (op. cit., p. 252).
Kardec foi fiel até o
fim, ao que lhe foi exigido, com imensa boa-vontade. Apenas pediu ao Senhor que
lhe desse “forças físicas e morais”, para o bom cumprimento de sua obra (id.).
Já
tendo presenciado, na mocidade, a obstrução da maravilhosa obra pedagógica de
Pestalozzi, em virtude de intolerâncias, preconceitos e polêmicas, Allan Kardec
diz o seguinte:
Várias vezes já nos perguntaram por
que não respondemos, em nosso jornal, aos ataques de certas folhas, dirigidos
contra o Espiritismo em geral, contra seus partidários e, por vezes, contra
nós. Acreditamos que o silêncio, em certos casos, é a melhor resposta. Aliás,
há um gênero de polêmica do qual tomamos por norma nos abstermos: é aquela que
pode degenerar em personalismo; não somente ela nos repugna, como nos tomaria
um tempo que podemos empregar mais utilmente, o que seria muito pouco
interessante para os nossos leitores, que assinam a revista para se instruírem,
e não para ouvirem diatribes mais ou menos espirituosas. Ora, uma vez engajado
nesse caminho, difícil seria dele sair, razão por que preferimos nele não
entrar, com o que o Espiritismo só tem a ganhar em dignidade. Até agora só
temos que aplaudir a nossa moderação, da qual não nos desviaremos, e jamais
daremos satisfação aos amantes do escândalo (KARDEC, 2014, p. 431).
Sua decisão, como se comprovaria
mais tarde, foi a mais acertada. Se nos ocupássemos em polemizar com aqueles
que nada mais desejam do que exibir seus pseudoconhecimentos, demonstraríamos, com isso, estar no mesmo nível de tais pessoas. Quanto mais aprendemos, mais
necessidade temos de exercitar a humildade, pois o que desconhecemos é sempre
infinitamente maior do que o nosso pretenso saber. Como disse o Espírito
Chateaubriand, na Revista Espírita (fev.
1860), o Espiritismo está sob a direção do próprio Cristo. E ninguém jamais
teve a humildade que Ele teve, embora seja o Governador Espiritual da Terra.
Aprendamos, pois, com Jesus, a sermos mansos e humildes de coração.
Se Kardec evitava polemizar com pessoas
egocêntricas, tudo fazia para estar presente junto àqueles que requisitavam sua
visita fraterna, ainda que, em sua modéstia e altruísmo, dispensasse as
homenagens pessoais e visasse sempre a caridade, virtude única atribuída por
ele à “salvação” de nossas almas. Em apoio ao que dissemos, transcrevemos
abaixo trechos de sua resposta ao convite recebido por ele dos espíritas de
Lyon, aos quais afirmou o seguinte:
[...] Provai,
sobretudo pela união e pela prática do bem, que o Espiritismo é a garantia da
paz e da concórdia entre os homens, e fazei que, em se vos vendo, se possa
dizer que seria desejável que todos fossem espíritas. Sinto-me feliz, meus
amigos, por ver tantos grupos unidos no mesmo sentimento, marchando de comum
acordo para o nobre objetivo que nos propomos. Sendo tal objetivo exatamente o
mesmo para todos, não poderia haver divisões; uma mesma bandeira deve guiar-vos
e nela está escrito: Fora da caridade não
há salvação (KARDEC, set. 1862, p. 381).
Mais
adiante, o Codificador do Espiritismo acrescenta: “Não vos esqueçais de que a
tática de vossos inimigos encarnados e desencarnados é dividir-vos. Provai-lhes
que perderão o tempo se tentarem suscitar entre os grupos sentimentos de inveja
e rivalidade que seriam uma apostasia da verdadeira Doutrina Espírita Cristã” (id.,
ibid.).
Por
fim, ao aceitar o convite dos irmãos de Lyon, Kardec demonstra a grandiosidade,
a generosidade e o desapego que caracterizam todas as almas elevadas com o
seguinte apelo:
Ainda uma palavra, meus amigos. Indo ver-vos, uma coisa desejo: é
que não haja banquete, e isto por vários motivos. Não quero que minha visita seja
ocasião para despesas que poderiam impedir a presença de alguns e privar-me do
prazer de ver todos reunidos. Os tempos são difíceis; importa, pois, não fazer
despesas inúteis. O dinheiro que isto custaria será mais bem empregado em
auxílio aos que, mais tarde, dele necessitarão. Eu vo-lo digo com toda
sinceridade: o pensamento naquilo que fizerdes por mim em tal circunstância
poderia ser uma causa de privação para muitos e me tiraria todo o prazer da
reunião. Não vou a Lyon para me exibir, nem para receber homenagens, mas para
conversar convosco, consolar os aflitos, encorajar os fracos, ajudar-vos com os
meus conselhos naquilo que estiver em meu poder fazê-lo. E o que de mais
agradável me podeis oferecer é o espetáculo de uma união boa, franca e sólida.
Crede que os termos tão afetuosos do vosso convite para mim valem mais que
todos os banquetes do mundo, ainda que fossem oferecidos num palácio. O que me
restaria de um banquete? Nada, ao passo que vosso convite fica como preciosa
lembrança e um penhor de vossa afeição. Até breve, meus amigos; se Deus quiser
terei o prazer de vos apertar as mãos cordialmente (KARDEC, 1862, p. 382).
É
preciso que nos inspiremos no exemplo de Allan Kardec, para que o objetivo
maior da Doutrina Espírita seja realizado: o da transformação moral de toda a
Humanidade. Para isso, entretanto, precisamos iniciar essa transformação em
nosso próprio íntimo, evitando as dissenções inúteis, praticando as boas obras
e respeitando as ideias dos nossos irmãos, assim como gostaríamos que estes
respeitassem as nossas. Com esse propósito, o Espírito Bezerra de Menezes, na
mensagem psicografada por Chico Xavier, em 1949, já nos dirigia este apelo:
[...] A fraternidade
constituir-se-á abençoado clima de trabalho e realização, dentro do Espiritismo
evangélico, ou permaneceremos na mesma expectação inoperante do princípio,
quando o material divino da Revelação e da Verdade não encontrava acesso em
nossos espíritos irredimidos.
Formemos não somente grupos de
indagação intelectual ou de crítica nem sempre reconstrutiva, mas, sobretudo,
ergamos um templo interior à bondade, porque sem espírito de amor todas as
nossas obras falham na base, ameaçadas pela vaga incessante que caracteriza o
campo falível das formas transitórias.
“Amemo-nos uns aos outros”, segundo
a palavra do Mestre que nos reúne, sem desarmonia, sem discussões ruinosas, sem
desinteligências destrutivas, sem perda de tempo nos comentários vagos e
inoportunos, amparando-nos reciprocamente, pelo trabalho, pela tolerância
salvadora, pela fé viva e imperecível (Apud SOUZA, 2013, p. 134).
A
todos os obreiros do Senhor, os Espíritos de luz não se cansam de enaltecer a
boa-vontade e nos animam a perseverar no bem e no esforço por extirpar de nosso
íntimos todas as mazelas que nos impeçam a ascensão ao Reino de Deus. Para tal,
precisamos ter “ouvidos para ouvir”, “olhos para ver”, “palavras para consolar
e dar ânimo” e “mãos para socorrer”. Neste soneto do Espírito Cruz e Souza,
tais apelos estão magistralmente sintetizados:
Aos
trabalhadores do Evangelho
Há uma falange de trabalhadores
Espalhada nas sendas do Infinito,
Desde as sombras do mundo amargo e
aflito
Aos espaços de eternos
resplendores.
É a caravana de batalhadores
Que, no esforço do amor puro e
bendito,
Rompe algemas de trevas e granito,
Aliviando os seres sofredores.
Vós que sois, sobre a Terra, os
companheiros
Dessa falange lúcida de obreiros,
Guardai-lhe a sacrossanta
claridade;
Não vos importe o espinho ingrato e
acerbo,
Na palavra e nos atos, sede o Verbo
De afirmações da Luz e da Verdade. (XAVIER, 2002, p. 252)
Referências
KARDEC,
Allan. O evangelho segundo o espiritismo.
Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2017.
______.
Obras póstumas. Trad. Evandro Noleto
Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2016.
______. Revista Espírita. Ano I, nº 11, nov.
1858. Trad. Evandro Noleto Bezerra.
5. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014.
______.
Revista Espírita. Ano III, nº 11, fev. 1860. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Ed. on line. Brasília: FEB.
______.
Revista Espírita, Ano V, set. 1862.
Trad. Evandro Noleto Bezerra. Ed. on line.
Brasília: FEB.
______.
Obras póstumas. Trad. Evandro Noleto
Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2016.
SOUZA,
Juvanir Borges de. (Coord.); XAVIER, Francisco Cândido. Bezerra de Menezes: ontem e hoje. Pelo Espírito Bezerra de Menezes.
4. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2013.
XAVIER,
Francisco Cândido. Parnaso de além-túmulo.
Pelo Espírito Cruz e Souza. 16. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
WANTUIL;
THIESEN. Allan Kardec: o educador e o
codificador. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004, v. I.
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