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quinta-feira, 16 de abril de 2020



Os Obreiros do Senhor e o Espiritismo
Jorge Leite de Oliveira
jojorgeleite@gmail.com 


Revista Reformador
Em mensagem intitulada Os obreiros do Senhor, o Espírito de Verdade diz o seguinte:

Aproxima-se o tempo em que se cumprirão as coisas anunciadas para a transformação da Humanidade. Felizes os que houverem trabalhado no campo do Senhor, com desinteresse e sem outro motivo, senão a caridade! [...] Felizes os que houverem dito aos seus irmãos: ‘Irmãos, trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra’, pois o Senhor lhes dirá: ‘Vinde a mim, vós que sois bons servidores, vós que soubestes impor silêncio aos vossos ciúmes e às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra! (KARDEC, 2017, p. 264)

                Allan Kardec foi instruído e, mais que isso, educado por Pestalozzi, cujo espírito pedagógico aliado a uma fé cristã sem dogmas visava a promover a união entre todos os crentes, fossem eles católicos, evangélicos, ou não, o que lhe custou a “intolerância protestante”, segundo Wantuil; Thiesen (2004, v. I, p. 74), embora ele, Pestalozzi, fosse protestante. O preconceito e a intolerância religiosa de seu tempo acabaram por paralisar uma das mais belas propostas educacionais de todas as épocas, com a implantação da pedagogia da instrução aliada à moral prática, não dogmática e tolerante para com as crenças alheias (id., p. 75). Essa era a proposta do Instituto Pestalozzi em Yverdon, na Suíça, de reputação mundial que, no dizer de um dos seus ex-alunos, o pastor Jayet, utilizava a “disciplina do amor” (In: WANTUIL; THIESEN, 2004, v. I, p. 75).
            As ideias sublimadas, porém, jamais são destruídas, por trazerem consigo as grandes verdades. Voltando a Lyon, o ainda jovem Denizard Rivail, antes mesmo de adotar o pseudônimo Allan Kardec, imaginava uma sociedade em que as disputas pelo poder cedessem lugar à ascendência do amor, à tolerância de crenças e ao respeito à diversidade de consciências. Desse modo, influenciado pela proposta pedagógica pestalozziana, Rivail ministrou cursos gratuitos, publicou obras pedagógicas premiadas, construiu institutos educativos e já se tornava célebre em Paris... mas ainda faltava algo que lhe preenchesse o ideal de transformar o mundo para melhor.
            Lembram Wantuil; Thiesen (2004, v. I, p. 83) que, desde a época em que estudou no Instituto Pestalozzi, o futuro Codificador da Doutrina Espírita sonhava com a união das religiões, por verificar ali que a intolerância religiosa afastava do trabalho professores de notável capacidade intelectual. E, quase ao final de sua missão, o “ideal da mocidade” era ressaltado por Allan Kardec nestas suas palavras:
A unidade de crença será o laço mais forte, o fundamento mais sólido da fraternidade universal, obstada, desde todos os tempos, pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as famílias, que fazem sejam uns, os dissidentes, vistos pelos outros como inimigos a serem evitados, combatidos, exterminados, em vez de irmãos a serem amados (KARDEC, apud WANTUIL; THIESEN, 2004, v. I, p. 83).
                Foi a partir dos primeiros contatos com os fenômenos das mesas girantes, na casa da senhora Plainemaison, em maio de 1855, que Kardec entreviu, nas comunicações observadas, algo sério, tão sério que o fez comparecer, semanalmente, àquelas reuniões. Observando e comunicando-se com os manifestantes, que se diziam ser Espíritos dos chamados mortos, o futuro Codificador do Espiritismo fazia experiências, com indagações até mesmo mentais, que sempre eram respondidas de modo inteligente e independente.
            Nessas reuniões, enquanto muitos divertiam-se com perguntas frívolas sobre coisas materiais e futuras, sem grande proveito, Kardec percebeu a “chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução que [ele] procurara em toda a [sua] vida” (KARDEC, 2016, p. 240). Perseverando em suas observações e experiências, com método, bom senso e objetividade, o Codificador do Espiritismo angariou a confiança dos Espíritos Superiores e do Espírito de Verdade, que lhe transmitia a vontade e as diretrizes do Cristo na consolidação do edifício da Doutrina Espírita, que é o Consolador prometido por Ele para permanecer eternamente com a Humanidade e nos esclarecer todas as coisas, como nos foi narrado em João, 14: 15 a 18 e  16:12- 13.
            O tempo passou, e Kardec abandonou todos os seus projetos de pedagogo e escritor renomado, arregaçou as mangas e dedicou os anos restantes de sua existência a observar, anotar, comentar e divulgar tudo o que via e ouvia das revelações dos Espíritos, com base nos métodos experimental e dialético. Foi assim que, disse ele: “Levava para cada sessão uma série de perguntas preparadas e metodicamente dispostas. Eram sempre respondidas com precisão, profundeza e lógica” (KARDEC, 2016, p. 241).
            Ali estava a base de O livro dos espíritos, que se expandiria nas demais obras do chamado pentateuco kardequiano, subsidiadas pela Revista Espírita: O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo; O céu e o inferno; e A gênese. Antes da implantação dessa nova era, o Espírito de Verdade, ao anunciar a Kardec sua missão, alertou-o de que para seu bom desempenho não lhe seria suficiente a inteligência. Ele teria que ser humilde, modesto e desinteressado, pois Deus “abate os orgulhosos, os presunçosos e os ambiciosos”. Ele precisaria possuir “devotamento, abnegação e disposição a todos os sacrifícios” (op. cit., p. 252).
Kardec foi fiel até o fim, ao que lhe foi exigido, com imensa boa-vontade. Apenas pediu ao Senhor que lhe desse “forças físicas e morais”, para o bom cumprimento de sua obra (id.).
            Já tendo presenciado, na mocidade, a obstrução da maravilhosa obra pedagógica de Pestalozzi, em virtude de intolerâncias, preconceitos e polêmicas, Allan Kardec diz o seguinte:

Várias vezes já nos perguntaram por que não respondemos, em nosso jornal, aos ataques de certas folhas, dirigidos contra o Espiritismo em geral, contra seus partidários e, por vezes, contra nós. Acreditamos que o silêncio, em certos casos, é a melhor resposta. Aliás, há um gênero de polêmica do qual tomamos por norma nos abstermos: é aquela que pode degenerar em personalismo; não somente ela nos repugna, como nos tomaria um tempo que podemos empregar mais utilmente, o que seria muito pouco interessante para os nossos leitores, que assinam a revista para se instruírem, e não para ouvirem diatribes mais ou menos espirituosas. Ora, uma vez engajado nesse caminho, difícil seria dele sair, razão por que preferimos nele não entrar, com o que o Espiritismo só tem a ganhar em dignidade. Até agora só temos que aplaudir a nossa moderação, da qual não nos desviaremos, e jamais daremos satisfação aos amantes do escândalo (KARDEC, 2014, p. 431).

            Sua decisão, como se comprovaria mais tarde, foi a mais acertada. Se nos ocupássemos em polemizar com aqueles que nada mais desejam do que exibir seus pseudoconhecimentos, demonstraríamos, com isso, estar no mesmo nível de tais pessoas. Quanto mais aprendemos, mais necessidade temos de exercitar a humildade, pois o que desconhecemos é sempre infinitamente maior do que o nosso pretenso saber. Como disse o Espírito Chateaubriand, na Revista Espírita (fev. 1860), o Espiritismo está sob a direção do próprio Cristo. E ninguém jamais teve a humildade que Ele teve, embora seja o Governador Espiritual da Terra. Aprendamos, pois, com Jesus, a sermos mansos e humildes de coração.
            Se Kardec evitava polemizar com pessoas egocêntricas, tudo fazia para estar presente junto àqueles que requisitavam sua visita fraterna, ainda que, em sua modéstia e altruísmo, dispensasse as homenagens pessoais e visasse sempre a caridade, virtude única atribuída por ele à “salvação” de nossas almas. Em apoio ao que dissemos, transcrevemos abaixo trechos de sua resposta ao convite recebido por ele dos espíritas de Lyon, aos quais afirmou o seguinte:

[...] Provai, sobretudo pela união e pela prática do bem, que o Espiritismo é a garantia da paz e da concórdia entre os homens, e fazei que, em se vos vendo, se possa dizer que seria desejável que todos fossem espíritas. Sinto-me feliz, meus amigos, por ver tantos grupos unidos no mesmo sentimento, marchando de comum acordo para o nobre objetivo que nos propomos. Sendo tal objetivo exatamente o mesmo para todos, não poderia haver divisões; uma mesma bandeira deve guiar-vos e nela está escrito: Fora da caridade não há salvação (KARDEC, set. 1862, p. 381).

            Mais adiante, o Codificador do Espiritismo acrescenta: “Não vos esqueçais de que a tática de vossos inimigos encarnados e desencarnados é dividir-vos. Provai-lhes que perderão o tempo se tentarem suscitar entre os grupos sentimentos de inveja e rivalidade que seriam uma apostasia da verdadeira Doutrina Espírita Cristã” (id., ibid.).
            Por fim, ao aceitar o convite dos irmãos de Lyon, Kardec demonstra a grandiosidade, a generosidade e o desapego que caracterizam todas as almas elevadas com o seguinte apelo:

Ainda uma palavra, meus amigos. Indo ver-vos, uma coisa desejo: é que não haja banquete, e isto por vários motivos. Não quero que minha visita seja ocasião para despesas que poderiam impedir a presença de alguns e privar-me do prazer de ver todos reunidos. Os tempos são difíceis; importa, pois, não fazer despesas inúteis. O dinheiro que isto custaria será mais bem empregado em auxílio aos que, mais tarde, dele necessitarão. Eu vo-lo digo com toda sinceridade: o pensamento naquilo que fizerdes por mim em tal circunstância poderia ser uma causa de privação para muitos e me tiraria todo o prazer da reunião. Não vou a Lyon para me exibir, nem para receber homenagens, mas para conversar convosco, consolar os aflitos, encorajar os fracos, ajudar-vos com os meus conselhos naquilo que estiver em meu poder fazê-lo. E o que de mais agradável me podeis oferecer é o espetáculo de uma união boa, franca e sólida. Crede que os termos tão afetuosos do vosso convite para mim valem mais que todos os banquetes do mundo, ainda que fossem oferecidos num palácio. O que me restaria de um banquete? Nada, ao passo que vosso convite fica como preciosa lembrança e um penhor de vossa afeição. Até breve, meus amigos; se Deus quiser terei o prazer de vos apertar as mãos cordialmente (KARDEC, 1862, p. 382).
                            
            É preciso que nos inspiremos no exemplo de Allan Kardec, para que o objetivo maior da Doutrina Espírita seja realizado: o da transformação moral de toda a Humanidade. Para isso, entretanto, precisamos iniciar essa transformação em nosso próprio íntimo, evitando as dissenções inúteis, praticando as boas obras e respeitando as ideias dos nossos irmãos, assim como gostaríamos que estes respeitassem as nossas. Com esse propósito, o Espírito Bezerra de Menezes, na mensagem psicografada por Chico Xavier, em 1949, já nos dirigia este apelo:

[...] A fraternidade constituir-se-á abençoado clima de trabalho e realização, dentro do Espiritismo evangélico, ou permaneceremos na mesma expectação inoperante do princípio, quando o material divino da Revelação e da Verdade não encontrava acesso em nossos espíritos irredimidos.
Formemos não somente grupos de indagação intelectual ou de crítica nem sempre reconstrutiva, mas, sobretudo, ergamos um templo interior à bondade, porque sem espírito de amor todas as nossas obras falham na base, ameaçadas pela vaga incessante que caracteriza o campo falível das formas transitórias.
“Amemo-nos uns aos outros”, segundo a palavra do Mestre que nos reúne, sem desarmonia, sem discussões ruinosas, sem desinteligências destrutivas, sem perda de tempo nos comentários vagos e inoportunos, amparando-nos reciprocamente, pelo trabalho, pela tolerância salvadora, pela fé viva e imperecível (Apud SOUZA, 2013, p. 134).

            A todos os obreiros do Senhor, os Espíritos de luz não se cansam de enaltecer a boa-vontade e nos animam a perseverar no bem e no esforço por extirpar de nosso íntimos todas as mazelas que nos impeçam a ascensão ao Reino de Deus. Para tal, precisamos ter “ouvidos para ouvir”, “olhos para ver”, “palavras para consolar e dar ânimo” e “mãos para socorrer”. Neste soneto do Espírito Cruz e Souza, tais apelos estão magistralmente sintetizados:

Aos trabalhadores do Evangelho

Há uma falange de trabalhadores
Espalhada nas sendas do Infinito,
Desde as sombras do mundo amargo e aflito
Aos espaços de eternos resplendores.

É a caravana de batalhadores
Que, no esforço do amor puro e bendito,
Rompe algemas de trevas e granito,
Aliviando os seres sofredores.

Vós que sois, sobre a Terra, os companheiros
Dessa falange lúcida de obreiros,
Guardai-lhe a sacrossanta claridade;

Não vos importe o espinho ingrato e acerbo,
Na palavra e nos atos, sede o Verbo
De afirmações da Luz e da Verdade. (XAVIER, 2002, p. 252)

Referências

KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2017.
______. Obras póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2016.
______. Revista Espírita.  Ano I, nº 11, nov. 1858. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 5. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014.
______. Revista Espírita.  Ano III, nº 11, fev. 1860. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Ed. on line. Brasília: FEB.
______. Revista Espírita, Ano V, set. 1862. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Ed. on line. Brasília: FEB.
______. Obras póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2016.
SOUZA, Juvanir Borges de. (Coord.); XAVIER, Francisco Cândido. Bezerra de Menezes: ontem e hoje. Pelo Espírito Bezerra de Menezes. 4. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2013.
XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de além-túmulo. Pelo Espírito Cruz e Souza. 16. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
WANTUIL; THIESEN. Allan Kardec: o educador e o codificador. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004, v. I.


 (Pub. Reformador em nov. 2018.)


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