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sábado, 2 de julho de 2022

 


23 MORAL ESTRANHA
 
Quem não odiar seu pai e sua mãe – Abandonar seu pai, sua mãe e seus filhos. Deixe os mortos enterrarem os seus mortos.  Não vim trazer a paz, mas a divisão.
 
23.1 Odiar pai e mãe
 
Grande multidão  caminhava com Jesus, quando ele se vira e diz: Se alguém vem a mim, e não odeia[1] seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, irmãs e mesmo sua vida, não pode ser meu discípulo. E quem não carregue sua cruz e me siga, não pode ser meu discípulo. Assim, qualquer de vocês que não renuncie a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. (Lucas, 14:25- 27, 33).
 
Aquele que ama seu pai ou sua mãe, mais do que a mim, não é digno de mim; aquele que ama seu filho, ou sua filha, mais do que a mim, não é digno de mim. (Mateus, 10:37).
 
Certas palavras, aliás muito raras, contrastam de maneira tão estranha com a linguagem do Cristo, que instintivamente repelimos o seu sentido literal, sem que a sublimidade da sua doutrina sofra algum dano. Escritas após sua morte, visto que nenhum evangelho foi escrito durante sua vida, podemos supor que, nesses casos, o fundo do seu pensamento não foi bem traduzido, ou ainda, o que não é menos provável, que o sentido primitivo tenha sofrido alguma alteração, ao passar duma língua para outra. Bastaria que um erro houvesse sido cometido uma vez, para que os copistas o reproduzissem, como ocorre com frequência com os fatos históricos.
A palavra odiar, nesta frase de Lucas: “Se alguém vem a mim, e não odeia seu pai, sua mãe”, está nesse caso. Ninguém teria a ideia de atribuí-la a Jesus. Seria, pois, supérfluo discuti-la ou tentar justificá-la. Primeiro, seria necessário saber se ele a pronunciou e, em caso afirmativo, se na língua em que ele se exprimia essa palavra tinha o mesmo sentido que na nossa. Nesta passagem citada por João: "Aquele que odeia a sua vida neste mundo a conserva para a eterna", é evidente que ela não exprime a ideia que lhe atribuímos.
A língua hebraica não era rica, e muitas das suas palavra tinham diversos significados. É o que acontece, por exemplo, com aquela que, no Gênesis, designa as fases da criação, e que  serviam também para exprimir um período de tempo qualquer e o período diurno. Disso resultou, mais tarde, a sua tradução pela palavra dia, e a crença de que o mundo fora feito em seis dias. O mesmo acontece com a palavra que designa um camelo e um cabo, pois os cabos eram feitos de pelos de camelo, e que foi traduzida camelo, na alegoria do buraco de uma agulha (Ver cap. 16, nº. 2).[2]
É necessário ainda considerar os costumes e as características dos povos que influem na
natureza particular de suas línguas. Sem este conhecimento, o sentido verdadeiro de certas palavras nos escapa de uma língua para outra; a mesma palavra tem um sentido mais enérgico ou menos enérgico. Pode ser, numa língua, uma injúria ou uma blasfêmia, e nada significar, nesse sentido, em outra, conforme a ideia que exprima. Numa mesma língua, as palavras mudam de significação com o passar dos séculos. É por isso que uma tradução rigorosamente literal nem sempre exprime perfeitamente o pensamento e, para ser exata,  às vezes deve empregar, não os termos correspondentes, mas outros equivalentes ou perífrases.
Estas observações aplicam-se especialmente à interpretação das santas Escrituras, e em particular dos Evangelhos. Se não levarmos em conta o meio em que Jesus vivia, ficamos sujeitos a enganos sobre o sentido de certas expressões e de certos fatos, em virtude do hábito de assimilar os outros a nós mesmos. Em todo caso, é necessário não dar à palavra odiar (ou aborrecer) a acepção moderna, que é contrária ao espírito do ensinamento de Jesus. (Ver também o cap. 14, n° 5 e segs.).



[1] Nota do tradutor: As traduções de João Ferreira de Almeida e outros tradutores substituem acertadamente o termo odiar por aborrecer, que dá mais sentido ao que Jesus quis expressar.
[2] Nota do Sr. Pezzani: Non odit, em latim: Kaï ou miseï em grego, não significa odiar, mas amar menos. O que o verbo grego miseïn exprime, o verbo hebreu, do qual Jesus deve ter-se servido, exprime melhor ainda. Esse verbo não significa apenas odiar, mas também amar menos, não amar igualmente, tanto quanto a um outro. No dialeto siríaco, o qual dizem que Jesus usava com mais frequência, esse significado ainda é mais acentuado. Assim deve-se traduzir. Em muitas outras passagens hebraicas e, sobretudo siríacas, o mesmo verbo é empregado no sentido de não amar tanto quanto a outro, de sorte que seria contrassenso traduzi-lo por odiar, que tem outra acepção bem definida. O texto de Mateus, aliás, afasta toda a dificuldade.


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