23.4 Não vim trazer a
paz, mas a divisão
Não julguem que vim
trazer paz à Terra; não vim trazer-lhe paz, mas espada; porque vim separar o homem
contra seu pai, a filha contra sua mãe, a
nora contra sua sogra; e o homem terá por inimigos os de sua casa (Mateus, 10:34-36).
Vim lançar fogo à Terra,
e que quero eu, senão que ele se acenda? Devo receber um batismo, e quanto me
apresso para que ele se cumpra! Vocês creem que eu vim trazer paz à Terra? Não vim trazer a paz, mas a divisão. Pois, de agora em
diante, se houver cinco pessoas numa casa, elas serão divididas, três contra
duas e duas contra três. O pai estará contra o filho, e o filho contra o pai; a
mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora, e a nora
contra a sogra (Lucas, 12:49-53).
Foi mesmo Jesus, a
personificação da doçura e da bondade, ele que não cessava de pregar o amor ao
próximo, quem disse: Eu não vim trazer a paz, mas a espada; vim separar o filho
do pai, o esposo da esposa; vim lançar fogo à Terra e tenho pressa que ele se
acenda? Essas palavras não estão em flagrante contradição com o seu ensino? Não
é blasfêmia atribuir-lhe a linguagem dum
conquistador sanguinário e devastador? Não, não há blasfêmia nem contradição
nessas palavras, porque foi ele mesmo quem as pronunciou, e elas atestam a sua
elevada sabedoria. Somente a
forma, um tanto equívoca, não exprime exatamente seu pensamento, o que provocou alguns enganos quanto ao seu sentido verdadeiro.
Tomadas ao pé da letra, elas tenderiam a transformar a sua missão, inteiramente
pacífica, numa missão de turbulências e discórdias, consequência absurda, que o
bom senso rejeita, pois Jesus não podia contradizer-se (ver cap. 14).
Toda ideia nova encontra
forçosamente oposição, e não há uma só que se implantasse sem lutas. Nesses
casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos resultados previstos,
pois quanto maior ela for, maior será o número de interesses ameaçados. Se ela
for notoriamente falsa, se a julgam sem consequências, ninguém se alarma, e a
deixam passar, certos de sua falta de vitalidade. Mas se ela é verdadeira, se está assentada em bases
sólidas, se é possível entrever-lhe o futuro, um secreto pressentimento adverte
seus antagonistas de que se trata de um perigo para eles, para a ordem de coisas por cuja manutenção se interessam.
E é por isso que se lançam contra ela e seus adeptos. A medida da importância e
das consequências de uma ideia nova se encontra, portanto, na emoção que seu
aparecimento provoca, pela violência da oposição que desperta, e pela intensidade
e a persistência da cólera dos seus adversários.
Jesus vinha proclamar uma
doutrina que minava pelas bases os abusos em que viviam os fariseus, os escribas
e os sacerdotes do seu tempo. Por isso o fizeram morrer, acreditando matar a
ideia matando o homem. Mas a ideia sobreviveu, porque era verdadeira; engrandeceu-se,
porque estava nos desígnios de Deus, e, nascida numa pequena vila da Judeia,
foi plantar a sua bandeira na própria capital do mundo pagão, em face dos seus inimigos
mais encarniçados, daqueles que tinham o maior interesse em combatê-la, porque
ela subvertia as crenças seculares, a que muitos se apegavam, mais por
interesse do que por convicção. Lá, mais lutas terríveis aguardavam seus
apóstolos. As vítimas foram inúmeras,
mas a ideia cresceu sempre e saiu triunfante, porque superava, como verdade, suas
antecessoras.
Note-se que o Cristianismo
apareceu quando o Paganismo declinava, debatendo-se contra as luzes da razão. Ainda
o praticavam, formalmente, mas a crença já havia desaparecido de maneira que
apenas o interesse pessoal o sustinha. Ora, o interesse é tenaz, não cede nunca
à evidência, irrita-se tanto mais, quanto mais peremptórios são os raciocínios que
se lhe opõem e que melhor demonstram seu erro. Bem sabe que está errado, mas
isso pouco lhe importa, pois não possui a verdadeira fé na alma; o que mais
teme é que a luz abra os olhos dos cegos. Esse erro o beneficia, e por isso a
ele se apega e o defende.
Sócrates não ensinara
também uma doutrina, até certo ponto, semelhante à do Cristo? Por que, então,
não prevaleceu, naquela época, no seio de um dos povos mais inteligentes da Terra?
É que os tempos ainda não haviam chegado. Ele semeou em terra não lavrada: o Paganismo
ainda não havia-se desgastado. Cristo
recebeu sua missão providencial no tempo apropriado. Nem todos os homens do seu tempo estavam à altura das
ideias cristãs, mas havia entre eles uma aptidão mais geral para assimilá-las,
porque já se fazia sentir o vazio que as crenças vulgares deixavam na alma. Sócrates
e Platão haviam aberto o caminho e predisposto os espíritos. (Ver na Introdução,
item IV: Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo).
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