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sexta-feira, 15 de maio de 2020



O Espiritismo e os dogmas da Igreja
Jorge Leite de Oliveira

            Segundo Wantuil (2007), os primeiros tempos do chamado Neoespiritualismo, nos Estados Unidos e na Inglaterra, atraíram a atenção de pesquisadores e autoridades diversas, como o Juiz John Edmonds, que ficou impressionado com a visão do Espírito de sua falecida esposa. Essas manifestações, exaustivamente pesquisadas, no século XIX, foram testemunhadas também por vários clérigos, alguns deles admitindo, honestamente, a realidade dos fenômenos e até mesmo os considerando “o maior acontecimento do século”, como foi o caso do padre italiano Joaquim Ventura de Raulica (WANTUIL, 2007, p. 203, nota de rodapé 127). Outros clérigos atribuíam-nos às manifestações demoníacas. Não era esse o caso do abade Almignana, doutor em Direito Canônico (op. cit., p. 209), e também do padre Lacordaire, que afirmou, em plena igreja de Notre-Dame de Paris ser o fenômeno mediúnico uma profecia divina cujo fim era “humilhar o orgulho do materialismo” (it. 20, p. 211). E ainda do monsenhor Affre, arcebispo de Paris, que disse a seus fiéis a respeito da afirmação do dominicano Lacordaire o seguinte: “Meus irmãos, foi Deus quem falou pela boca do ilustre dominicano” (op. cit. p. 211).
Para Edmonds, a comprovação da sobrevivência do Espírito, proporcionando ao mundo a certeza da imortalidade da alma e sua comunicação post mortem era uma fonte extraordinária de consolo, pelo que afirmou sobre o conhecimento espírita:

Nele se acha tudo o que consola o triste e conforta o desgraçado; tudo o que nos suaviza a marcha para o túmulo e nos livra dos temores da morte; tudo o que ilumina o ateu e contribui para reformar o viciado; tudo o que premia e anima o virtuoso em meio das provas e vicissitudes da vida, e o que esclarece o homem nos seus deveres e no seu destino, libertando-o da inquietude e da dúvida (Apud WANTUIL, 2007, p. 190).

Ainda nesse excelente livro, reeditado pela Federação Espírita Brasileira (FEB), Zeus Wantuil informa-nos que o conde católico de Richemond, em sua brochura publicada em Paris, intitulada Le mystère de la danse des tables dévoilé par ses rapport avec les manifestations spirituelles d’Amérique, relata os fenômenos mediúnicos extraordinários presenciados por ele, nos Estados Unidos, deixando estupefatos os que tomavam conhecimento desses acontecimentos: frases e páginas completas formadas por batidas à medida que o alfabeto ia sendo citado; os mais variados sons, como os de serras, chuva, trovão, árias de violões e guitarras; movimentos de mesas que rodopiavam pelo quarto, com grande quantidade de livros sobre si, sem que nenhum deles caísse, ainda que a mesa se inclinasse, materializações de mãos que assinavam os nomes de pessoas falecidas e, entre outras coisas, vultos com “formas humanas diáfanas” que falavam.
O conde de Richemond testemunhou tudo isso e até mesmo classificou os médiuns existentes nos EUA. Na época, já “havia médiuns psicógrafos, falantes, audientes, videntes e até mesmo receitistas e passistas”, segundo Wantuil (2007, p. 193). Para o conde, entretanto, Satã comandava todas essas manifestações diabólicas, cuja finalidade era “destruir as religiões cristãs existentes” (id., p. 193). Lamentável, tal cegueira espiritual.
Confundindo a pureza do Cristianismo do primeiro século depois de Cristo com os dogmas criados pelos representantes da Igreja, o conde de Richemond recusava-se a aceitar os adeptos “daquela nova revelação” como cristãos, uma vez que aqueles não aceitavam Jesus como Deus, negavam o pecado original, a existência do demônio e as penas eternas. Tudo isso sem nos referirmos ao repúdio da Igreja à crença na reencarnação,  aceita pelos judeus e primeiros cristãos, principalmente pelos iniciados, ainda que o povo, em geral, não tivesse uma ideia muito clara sobre o assunto, confundindo reencarnação e ressurreição.
Allan Kardec, na Revista Espírita de novembro de 1858, afirma que nem lhe passava pela mente a ideia da reencarnação, quando esta lhe foi ensinada pelos Espíritos. Diz ele que havia elaborado “um sistema completamente diferente, partilhado, aliás, por muitas pessoas”.  E, em vista da importância do que afirmavam os Espíritos, acrescenta que, sob o aspecto reencarnacionista, essa informação, num primeiro momento, o deixou perplexo e contrariou-o bastante. No início da revelação sobre nossas múltiplas existências, diz Kardec, “[...] nós não cedemos ao primeiro choque; combatemos, defendemos nossa opinião, levantamos objeções e só nos rendemos à evidência quando percebemos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as dificuldades levantadas por essa questão” (KARDEC, 2014, p. 434).
Allan Kardec, em tudo o que escreve, demonstra ser o “bom senso encarnado”, conforme afirmou Camille Flamarion sobre ele (2009, p. 38), em seu discurso de despedida junto ao túmulo do Codificador da Doutrina Espírita.  Este descendente de família católica, professor emérito e autor de diversas obras premiadas, na França, comparou a informação dos Espíritos sobre a reencarnação com a ideia de existência única e optou por aquela, que passou a defender, como ocorre na citação abaixo:

Muitos repelem a ideia da reencarnação pelo só motivo de ela não lhes convir. Dizem que uma existência já lhes chega de sobra e que, portanto, não desejariam recomeçar outra semelhante [...]. Uma de duas: ou a reencarnação existe ou não existe; se existe, nada importa que os contrarie; terão de sofrê-la, sem que para isso lhes peça Deus permissão [...]. Diremos, todavia, aos que a formulam que se tranquilizem, que a Doutrina Espírita no tocante à reencarnação, não é tão terrível como a julgam; que, se a tivessem estudado a fundo, não se mostrariam tão horrorizados; saberiam que deles dependem as condições da nova existência, que será feliz ou desgraçada, conforme ao que tiverem feito neste mundo; que desde agora poderão elevar-se tão alto que nova queda no lodaçal não lhes seja mais de temer (KARDEC, 2014, p. 435).

            Assim acontece com todas as ideias novas, que não são bem compreendidas, sobretudo por quem delas somente possui um conhecimento superficial e, muitas vezes, se deixa influenciar por outrem, sem se darem ao trabalho de pesquisarem a fundo aquilo que criticam ou não aceitam. Quantas pessoas não chegam a afirmar: “ainda que visse, não acreditaria”. A elas se referia Jesus, quando disse: “Têm olhos, mas não vêm; têm ouvidos, mas não ouvem”.
É muito cômodo só aceitar aquilo que não traz prejuízo a quem deseja manter as pessoas sob o poder temporal do mundo; mas somos Espíritos eternos e, como tais, não podemos nos acomodar à ideia de uma existência física única, se desejarmos sair da ignorância e começar a alçar voos mais altos, pois todos somos filhos do Altíssimo, como nos afirmou o Cristo: “[...] Não me detenhas porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (João, 20:17).
Não é preciso entrar em considerações sobre as diversas passagens bíblicas que, à luz do Espiritismo, nos remetem à ideia clara sobre a necessidade de voltarmos à existência material. Basta que se desafie, a quem quer que seja, provar que ali exista qualquer palavra de Jesus contrária à necessidade da reencarnação para nós, Espíritos imperfeitos, mas fadados à evolução e à conquista da felicidade eternas como coroamento dos nossos esforços e, consequentemente, de nosso merecimento. Não vale interpretação que fuja do sentido literal das palavras de nosso amado Mestre, o Cristo de Deus, nas palavras inspiradas de Pedro (Mateus, 16:16).
 Aos que nos pedirem para provar o contrário, sem necessidade de nos referirmos a outros textos, como o do esclarecimento a Nicodemos, por exemplo, indicamos Mateus, 11, 7 a 14. No versículo 14, ao se referir a João Batista, Jesus diz, com todas as letras: “E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir”. Mais claro do que isso é impossível. Por isso, no versículo seguinte, ele arremata: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça”.
Todo aquele que estuda e reflete nos ensinamentos sagrados, esclarecidos pelo Espiritismo, percebe que, sem a possibilidade da “expiação, melhoramento progressivo da Humanidade” (KARDEC, 2006, q. 167) não haveria justiça na Lei Divina.  O último profeta do texto bíblico, que antecede os quatro Evangelhos, Malaquias, no capítulo 4, versículo 5, já anunciava o retorno de Elias, que Jesus diz ter sido João, quando o citado profeta diz: “Eis que eu vos envio o profeta Elias, antes que venha o dia grande e terrível do Senhor”. Quem ler sobre o nascimento de João, primo de Jesus, assim como o deste, verá que é pela reencarnação que Elias, agora chamado João Batista retorna para anunciar a vinda do Messias, Nosso Senhor Jesus Cristo.
O nascimento de João é descrito em Lucas, 1:5 a 25. No versículo 17 desse capítulo, lemos: “E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para converter o coração dos pais aos filhos e os rebeldes, à prudência dos justos, com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto”. Ora, se João iria “no espírito e virtude de Elias” é porque ele é o próprio, em corpo infantil, e, portanto, ao se tornar adulto, assumiria sua condição de profeta Elias que, tendo mandado matar os profetas de Baal (I Reis, 18:40), em nova encarnação, teria de expiar sua atitude, ao ter sua cabeça decepada e oferecida pela filha de Herodias, em uma bandeja, a Herodes (Mateus, 14: 3 a 11). Antes disso, porém, já cumprira sua missão de precursor e anunciador da presença de Jesus na Terra. Aqui fica claro que, mesmo em missão, não deixamos de expiar os excessos de nossas existências anteriores. Por sua presciência, sabia Jesus da necessidade de esclarecimentos futuros à Humanidade. Por isso, disse aos seus apóstolos estas palavras:

Se me amardes, guardareis os meus mandamentos, E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós (João, 14:15 a 18).

Do exposto, deduz-se que, assim como o Cristo disse: “Não vim modificar a Lei, mas dar-lhe cumprimento.”, o Espiritismo também não veio modificar a Lei Cristã, definitiva para a Humanidade, que completa e liberta da ignorância o ser humano. Pois a Lei a que ambos se referem é a Lei de Deus, de quem todos nós, como dito acima, somos seus filhos muito amados, cujo objetivo da vida é a evolução eterna com base na prática da caridade humilde e desinteressada.
Com relação à criação de anjos, as questões 128 a 131 d’O livro dos espíritos deixam claro que esses Espíritos “percorreram todos os graus” da escala citada por Kardec na centésima questão dessa obra, sendo errôneo acreditar que Deus teria criado seres perfeitos. Perfeição é conquista individual. Imperfeição é resultado do livre-arbítrio mal utilizado, mas ninguém foi criado por Deus para a prática do mal eternamente, donde não existirem seres na condição que a Igreja atribui aos “demônios”. A longa resposta  dada à questão 131 (KARDEC, 2006), resolve essa questão, pelo que remetemos o leitor estudioso a ela.
O dogma do pecado original surgiu de uma doutrina desenvolvida pelo bispo de Hispona, Santo Agostinho. Essa doutrina, adotada pela Igreja, pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal em virtude da queda do homem. No Judaísmo e no Islamismo, assim como não podia deixar de ser, no Espiritismo não existe esse dogma.
Em cumprimento à promessa de Jesus Cristo, que preside ao advento do Espiritismo, a questão do Céu e do Inferno foi esclarecida n’O livro dos espíritos, parte 4, que trata sobre as “penas e gozos terrenos” e “penas e gozos futuros”. Essa parte dessa obra é desenvolvida no livro intitulado por Kardec O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo (KARDEC, 2016).
Quanto à ideia do pecado original, essa é apenas a alegoria que indica a presença, em cada um de nós, do gérmen de nossas paixões e dos vestígios de nossa inferioridade primitiva. É o que nos explica São Luís, na última questão d’O livro dos espíritos, quando nos diz que a alegoria do “[...] pecado original prende-se à natureza ainda imperfeita do homem que, assim, só é responsável por si mesmo, pelos seus próprios erros, e não pelas faltas de seus pais”. O parágrafo final da resposta de São Luís é um alerta sempre atual:

Todos vós, homens de fé e de boa-vontade, trabalhai, pois, com zelo e coragem na grande obra da regeneração, porque colhereis centuplicado o grão que houverdes semeado. Ai dos que fecham os olhos à luz, pois preparam para si mesmos longos séculos de trevas e decepções! Ai dos que fazem dos bens deste mudo a fonte de todas as suas alegrias, pois sofrerão muito mais privações do que os gozos de que desfrutaram! Ai, sobretudo, dos egoístas! Não encontrarão ninguém que os ajude a carregar o fardo de suas misérias. (KARDEC, 2006, q. 1019).

            O pecado original, assim como o céu e o inferno é aquilo que trazemos conosco ou o que fazemos contrariamente ao que nos recomenda nossa consciência, onde se manifesta, em nós, a Lei Divina, conforme nos esclarece a questão 621 da obra de Kardec (2006) citada acima. Somos todos, individualmente, responsáveis pelos nossos atos. Por isso nos recomendava Jesus o “vigiai e orai” (Mateus, 26:41).

REFERÊNCIAS

KARDEC, Allan. O céu e o inferno. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. (bolso). Brasília: FEB, 2016.

______. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2006.
 ______. Obras póstumas. Trad. Evandro N. Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2009.

______, Revista Espírita – 1858. Trad. Evandro N. Bezerra. 5. ed. Brasília: FEB, 2014.

WANTUIL, Zêus. As mesas girantes e o espiritismo. 5. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007.

(Publicado em Reformador, revista mensal da Federação Espírita Brasileira, em julho de 2017.)

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